Amo-te Lisboa

   Procurei-te pelas ruas de Lisboa, afogadas em solidão. Cruzei-me com centenas de vultos e tu sem existires na sombra de nenhum. Sussurrei o teu nome aos becos gélidos, onde nada encontrei senão fragmentos de ti. Deixaste pedaços teus espalhados por toda a cidade -pela cidade em que te forcei a existir. Habitas por todos os cantos e em parte nenhuma. Até o Tejo sabe o teu cheiro e a calçada o teu andar -Lisboa sabe-te tão bem como eu. Tentei roubar-te aos sítios por onde foste ficando mas tu não o permitiste -aquele sitio já não é apenas aquele sitio, é aquele sitio e a pessoa que amo nele, pertences a todos eles.
   E parece que foi hoje que nus dançávamos naquele quarto de Lisboa: "Amor, dança comigo.". Naquele quarto, de quatro desgostosas paredes pálidas, em que a luz do dia nos espreitava por entre as cortinas e beijava as roupas espalhadas pelo chão. Queria tanto prender-te àquele espaço, a mim: "Amor, não vás. Fica aqui mais um tempo, mais uns tempos se quiseres, aliás, sabes que para sempre, por mim, não tem problema...". Engraçado como quatro paredes podem guardar tanto amor que ali foi feito, plantado, acolhido.
   Aquela cidade punha-me possessa -aquela cidade e aquele quarto. Mas amava-te a ti e aprendi a amar aqueles lugares porque passaste a existir neles. Estavas lá. Em toda a parte: tu eras as ruas, eras os bancos do metro, eras o nosso restaurante, a estação de Sete-Rios, as linhas do comboio para Cascais, os jardins, a vista para o rio, os adeuses na rua, o caminho para casa, o lado esquerdo da cama -eras Lisboa.

Esqueço-me de regar as minhas flores. Mato-as sempre.

Romeu do olho azulado

O meu gato morreu e o luto veste-se de silêncios.

A ausência das tuas mãos doces

Desde que te conheci, tenho descoberto várias formas de dor, todas elas derivadas do amor que pavimenta a nossa calçada: a dor de quando nos despedimos a primeira vez que nos vimos, em que o teu cheiro ficou entranhado em mim durante dias, até eu o não lembrar mais; a dor de não te ver há não sei quantos pores-de-sois; a dor de te deixar, outra vez, agora estimando-te mais que na vez anterior; a dor que recomeça após o primeiro pôr-de-sol sem te ver -e não sei se dói mais no primeiro pôr-de-sol, em que a contagem da tua ausência começa novamente, ou se doí mais no 57º pôr-de-sol sem te pôr a puta da vista em cima, nem vislumbrar na penumbra a hora de pôr, ou se, na verdade, não doará mais no 83º pôr-de-sol sem te ver e último até voltar a contemplar-te, uma vez mais.

137 batimentos contrastados

A alma não sossega -agitada, inquieta, duvidosa-, questiona-se em demasia. Acalma-a. Acolhe-a no calor dos teus braços e canta-lhe uma canção de embalar. Como a tua voz pacifica lhe adormece a dor: és-lhe a salvação.

Cheiras-me a jasmim

Se me perguntassem o que gostaria de fazer o resto da minha vida, eu responderia, com toda a convicção e sem hesitar "viajar e conhecer pessoas". E, provavelmente, a pessoa que me questionou, nem se atreveria a perguntar-me "porquê?" porque bastaria-lhe o brilho dos meus olhos como resposta. No entanto, caso o brilho dos olhos não fosse esclarecedor o suficiente e, ainda assim, a pessoa atrevesse-se a perguntar, eu responderia de imediato: "Sabe... Nós podemos ser muita coisa, mas aquilo que determina a nossa verdadeira essência são as coisas em que nos encontramos. E eu encontro-me a viajar e a conhecer pessoas. Mas mais do que isso, eu não só me encontro como também me perco. E é essa a parte fascinante: como podemos nós encontrar-mo-nos em algo que nos faz perder? Eu costumo perder-me nas pessoas como quem se perde a contemplar a imensidão que é o céu à noite. E dessa mesma forma eu perco-me a viajar. Na verdade, e agora que penso sobre isso, talvez a minha resposta à primeira pergunta tenha sido um tanto ou quanto redundante porque talvez... Talvez conhecer pessoas seja uma forma peculiar de viajar e vice-versa. Mas como eu estava a dizer, em ambas as coisas eu perco-me e, simultaneamente, encontro-me. Parece um paradoxo eu sei, mas... Imagine-se a guiar por uma daquelas estradas que é acompanhada, paralelamente, pelo mar. Está a idealizar? Os seus olhos estão na estrada, mas o mar fascina-a -o rebentar das ondas, o degradê em tons de azul, o movimento uniforme e sereno- e, uma vez por outra, tira os olhos da estrada para vislumbrar todo aquele magnífico cenário, certo? É ai que se perde! É nesse preciso momento! E é esse o efeito que as pessoas têm em mim: eu perco-me nelas como quem conduz por uma estrada que é acompanhada pelo oceano. E essas são o meu tipo de pessoas preferido: aquelas que me restituem enquanto me roubam; aquelas que me fazem tirar os pés do chão, desviar os olhos da estrada para observar o oceano. Lentamente, vou-me perdendo nos detalhes, nas singularidades, na forma como gesticulam enquanto se esforçam por explicar-me algo que adoram, nos movimentos dos lábios, no pestanejar, no erguer das sobrancelhas, no olhar fugitivo, nos silêncios... E eu, maravilhada, oiço-as, olho-as, perco-me! Permito que me roubem e me façam perder no Cosmos que são: nas suas estrelas, nos seus meteoros, planetas, satélites, nos seus cantos desconhecidos... Nos seus vazios."


Na cidade onde as pessoas tomam o pequeno-almoço de pé

   À minha frente ia uma senhora com um lenço que, para quem vinha de frente, lhe cobria totalmente a cabeça, mas para quem vinha atrás dela, que era o meu caso, deixava descoberta a nuca. Pensa Será que ela sabe? Se usava aquele lenço florido é porque, quando se viu ao espelho de manhã -isto se se olhou, uma vez que enfrentar-mo-nos a nós próprios, quando parecemos tão pouco com aquilo que éramos, é um ato que requer coragem-, considerou que as pessoas iriam preferir ver um pano florido a uma nuca que é uma ilhota de cabelo, rodeada por pele invulgarmente esbranquiçada. Mas eu achei aquilo belo. Lembrou-me uma daquelas árvores que no outono se vão despindo lentamente das suas folhas -não as perdem de uma vez, mas aos poucos. Eu era as pessoas que ela receou que vissem além do pano florido e achei belo.
   Eram 10h da manhã e aquela senhora, tão bela como uma árvore no outono, caminhava num caminhar que mais parecia o caminhar de alguém que caminha às 18h da tarde, vindo do trabalho, ansioso por chegar a casa, descalçar os sapatos e pendurar no cabide da entrada, o sobretudo que é o peso do mundo. Pensa Aposto que ainda ninguém lhe disse bom dia hoje -a mim também ainda ninguém me disse bom dia hoje. Pensa Se eu estivesse na minha terra, as velhinhas madrugadeiras que vão ao pão, já me tinham dito bom dia. Pensa Se eu estivesse na minha terra, o carteiro da ronda da manhã, que tem os olhos azuis como a água cristalina, já me tinha dito bom dia. Pensa Se eu estivesse na minha terra, já tinha recebido um bom dia de todas as pessoas com quem me cruzava. Pensa Na minha terra as casas são caiadas de branco com um rodapé azul ou amarelo (a escolha fica ao critério do proprietário da habitação). Pensa Na minha terra, de manhã, saímos com um cesto de verga, cheio de "bons dias", prontos a serem espalhados por toda a gente. Pensa Na minha terra as pessoas olham umas para as outras. Pensa Na minha terra as pessoas sentam-se para tomar o pequeno-almoço. Pensa Se esta senhora estivesse na minha terra, já tinha recebido um bom dia do presidente da câmara, que às 9h17 desloca-se para o seu posto, com a pasta de couro na mão esquerda e um caminhar despreocupado. Pensa O frio da cidade arruína-a. Pensa Falta-lhe o calor da minha terra.
   As pessoas que a cruzavam olhavam-na mas não passavam de uns cobardolas miseráveis que olham e desviam o olhar -tinham receio que ela sentisse a pena com que a olhavam. Pessoas assim não merecem olhar -pessoas que olham com aquele olhar, como se não tivessem mais nenhum para oferecer. Pessoas de olhos cheios não merecem olhar para pessoas de olhos vazios. Provavelmente, ela nem repararia se a olhassem, um cabisbaixo não alcança mais que a linha dos tornozelos (e que sorte os tornozelos ainda não lançarem olhares daqueles), ou talvez não precisasse vê-los a olharem-na, para sentir os olhares pobres das pessoas. Mas eu queria olhá-la. Sabia que os meus olhos nunca iriam ser tão desprovidos quanto os dela. Pensa Talvez os meus olhos, meio vazios, meio cheios, façam os dela transbordar. Um passo, dois passos, meia dúzia de passos: alcancei-a, olhei-a, ela sentiu, e ergueu a cabeça. Estava certa: não era preciso olhar-se para se ver um olhar. Libertei o "bom dia" mais confortante que consegui e sorri-lhe. Retribuiu-me ambos -o cumprimento com uma voz frágil e o sorriso com uns lábios baços. Quando olhei para trás, a sua cabeça estava erguida e a face esboçava um sorriso gracioso. Caminhava como quem já foi a casa, descalçou os sapatos e tirou o sobretudo que é o peso do mundo. Pensa Está corroída por dentro. Pensa Pesa-lhe o andar, as pálpebras, a vida. Pensa Pesa-lhe a cura que não cura. Pensa Morre todos os dias. Pensa Roubaram-lhe a alma mas olha como sorri. Pensa É mais bela que qualquer um de nós.