Na cidade onde as pessoas tomam o pequeno-almoço de pé

   À minha frente ia uma senhora com um lenço que, para quem vinha de frente, lhe cobria totalmente a cabeça, mas para quem vinha atrás dela, que era o meu caso, deixava descoberta a nuca. Pensa Será que ela sabe? Se usava aquele lenço florido é porque, quando se viu ao espelho de manhã -isto se se olhou, uma vez que enfrentar-mo-nos a nós próprios, quando parecemos tão pouco com aquilo que éramos, é um ato que requer coragem-, considerou que as pessoas iriam preferir ver um pano florido a uma nuca que é uma ilhota de cabelo, rodeada por pele invulgarmente esbranquiçada. Mas eu achei aquilo belo. Lembrou-me uma daquelas árvores que no outono se vão despindo lentamente das suas folhas -não as perdem de uma vez, mas aos poucos. Eu era as pessoas que ela receou que vissem além do pano florido e achei belo.
   Eram 10h da manhã e aquela senhora, tão bela como uma árvore no outono, caminhava num caminhar que mais parecia o caminhar de alguém que caminha às 18h da tarde, vindo do trabalho, ansioso por chegar a casa, descalçar os sapatos e pendurar no cabide da entrada, o sobretudo que é o peso do mundo. Pensa Aposto que ainda ninguém lhe disse bom dia hoje -a mim também ainda ninguém me disse bom dia hoje. Pensa Se eu estivesse na minha terra, as velhinhas madrugadeiras que vão ao pão, já me tinham dito bom dia. Pensa Se eu estivesse na minha terra, o carteiro da ronda da manhã, que tem os olhos azuis como a água cristalina, já me tinha dito bom dia. Pensa Se eu estivesse na minha terra, já tinha recebido um bom dia de todas as pessoas com quem me cruzava. Pensa Na minha terra as casas são caiadas de branco com um rodapé azul ou amarelo (a escolha fica ao critério do proprietário da habitação). Pensa Na minha terra, de manhã, saímos com um cesto de verga, cheio de "bons dias", prontos a serem espalhados por toda a gente. Pensa Na minha terra as pessoas olham umas para as outras. Pensa Na minha terra as pessoas sentam-se para tomar o pequeno-almoço. Pensa Se esta senhora estivesse na minha terra, já tinha recebido um bom dia do presidente da câmara, que às 9h17 desloca-se para o seu posto, com a pasta de couro na mão esquerda e um caminhar despreocupado. Pensa O frio da cidade arruína-a. Pensa Falta-lhe o calor da minha terra.
   As pessoas que a cruzavam olhavam-na mas não passavam de uns cobardolas miseráveis que olham e desviam o olhar -tinham receio que ela sentisse a pena com que a olhavam. Pessoas assim não merecem olhar -pessoas que olham com aquele olhar, como se não tivessem mais nenhum para oferecer. Pessoas de olhos cheios não merecem olhar para pessoas de olhos vazios. Provavelmente, ela nem repararia se a olhassem, um cabisbaixo não alcança mais que a linha dos tornozelos (e que sorte os tornozelos ainda não lançarem olhares daqueles), ou talvez não precisasse vê-los a olharem-na, para sentir os olhares pobres das pessoas. Mas eu queria olhá-la. Sabia que os meus olhos nunca iriam ser tão desprovidos quanto os dela. Pensa Talvez os meus olhos, meio vazios, meio cheios, façam os dela transbordar. Um passo, dois passos, meia dúzia de passos: alcancei-a, olhei-a, ela sentiu, e ergueu a cabeça. Estava certa: não era preciso olhar-se para se ver um olhar. Libertei o "bom dia" mais confortante que consegui e sorri-lhe. Retribuiu-me ambos -o cumprimento com uma voz frágil e o sorriso com uns lábios baços. Quando olhei para trás, a sua cabeça estava erguida e a face esboçava um sorriso gracioso. Caminhava como quem já foi a casa, descalçou os sapatos e tirou o sobretudo que é o peso do mundo. Pensa Está corroída por dentro. Pensa Pesa-lhe o andar, as pálpebras, a vida. Pensa Pesa-lhe a cura que não cura. Pensa Morre todos os dias. Pensa Roubaram-lhe a alma mas olha como sorri. Pensa É mais bela que qualquer um de nós.

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